segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Entrevista – A segunda vida pós dispopia de Marina Gasolina: “Fui até o fim do mundo e voltei. Fui até o inferno e voltei.”

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
Marina Gasolina é o alter ego de Marina Vello, artista curitibana que já passou por projetos como Bisquit Pride, Laura’s Problem e o festejado (e odiado) Bonde do Rolê – com quem viajou o mundo realizando apresentações intensas e estapafúrdias e registrou o disco “With Lasers”, disco presente na lista de “Melhores de 2007” do Scream & Yell. Depois de sair do caótico grupo de fake funk carioca, Vello reapareceu anos mais tarde em uma roupagem bem mais sóbria com o Madrid, um duo formado com Adriano Cintra (ex-CSS). O projeto rendeu clipes, um disco, um EP e uma apresentação no finado Planeta Terra Festival, em 2012 – e deve renascer em 2023. Seu primeiro disco solo, intitulado “Commando” e lançado em 2013, trazia rock flertando com música eletrônica e apontava um caminho promissor. Mas desde então Marina Gasolina evaporou e sumiu dos holofotes. O que aconteceu?

Na verdade, Marina começou a registrar sozinha em 2014 uma série de demos com seu próprio equipamento em um estúdio em Paris. Mas logo a compositora teve que sobreviver a uma longa e degradante travessia que englobava dependência química, fim de relacionamentos e uma mudança de volta ao Brasil – que também vivia sua distopia nacional com o golpe, o bolsonarismo e o coronavírus. Em meio a essas catástrofes, foi necessário que Marina Gasolina se recolhesse para dar lugar à Marina professora, artista visual e escritora. “Como um bicho que se esconde para ir morrer, eu fui me esconder, mas daí melhorei”, conta. E somente depois deste período de reclusão que a Marina musicista começou a revisitar essas gravações, e o resultado saiu finalmente em novembro de 2022, sob o nome de “Dispopia”.
Mixado e masterizado por Rafael Panke (ruído por mm/Delta Cockers), o álbum é identificado por sua criadora como “uma obra sobre luto, pulsão de morte, uma ode às drogas e ao fim do mundo, ao fim de tudo”. Não é à toa que o desenho da capa (acima) é o traçado de um Spomenik (“monumento”, na língua croata) chamado Memorial da Batalha de Sutjeska no Vale dos Heróis, construído em 1971 em Tjentište, na Bósnia. Spomeniks são marcos futuristas construídos na antiga Iugoslávia como um tributo às batalhas da 2ª guerra mundial que ocorreram no território do antigo país, com o intuito de lembrar momentos de dificuldade, de vitória, de guerra e de paz. Sendo assim, a arte da capa traz uma série de significados à artista, como se visitar pessoalmente esses lugares e imagens na época fosse uma espécie de premonição do que estaria por vir – tanto para as batalhas pessoais de Vello quanto para as do Brasil e do mundo.

“Dispopia” traz uma sonoridade melancólica já presente em canções anteriores da artista como em “I’ve Been Around” e “Bride Dress in a Frame”, do Madrid, e evitando momentos mais agitados como o single “Leone”, mas mantendo alguns elementos eletrônicos minimalistas influenciados pela coldwave e post punk. “Struck” foi lançado como primeiro aperitivo do disco, trazendo um clipe filmado por Fernando Nogari em lugares abandonados nos arredores de Petrova Gora, na Croácia. Em seguida, foi a vez de “Know Nothing”, com um vídeo mostrando várias pastas de fotos e registros de períodos diferentes da vida da compositora, e mais recentemente, “Paranoia Beams”, misturando trechos de um projeto de filme de Vello com Nogari e imagens dos patinadores Christopher Dean e Jayne Torvill nos Jogos de inverno de Sarajevo em 1984.

Morando em São Paulo desde janeiro de 2022, Marina começou a divulgar “Dispopia” com alguns shows pela capital paulista, Londrina (PR), Rio de Janeiro e Vitória (ES). Por e-mail, Marina Vello falou com o Scream Yell sobre esse retorno de Marina Gasolina, o conceito da obra e o que mais deve vir pela frente. Leia o papo abaixo.

“Commando” saiu em 2013 e “Dispopia” saiu só no final de 2022. O que você fez nesse tempo todo entre os dois? E por que voltar com este disco?
O “Commando” era um disco pronto desde 2011. Eu o deixei numa gaveta e não sabia bem o que fazer. Quando lancei, estava envolvida nas coisas do Madrid; em 2013 lançamos também um EP, então foi um lançamento sem show, divulgação, foi bem tímido. Eu comecei a gravar e dar forma ao “Dispopia” em 2014. Era para ser um filme, chamado “Utopia”. Esse disco era a trilha sonora e a ideia era tocar essa trilha ao vivo nas sessões do filme. Era a história de uma pessoa que acordava num mundo em escombros completamente sozinha. Sem saber o que aconteceu ou onde estava exatamente, essa pessoa perambulava pelas ruínas fazendo perguntas sem respostas. Um diálogo interno, sobre trauma, sobre solidão, sobre o fim do mundo. A gente filmou em 2015, na Bósnia e na Croácia, em alguns Spomeniks abandonados. Também visitamos lugares que foram usados como centros esportivos nas Olimpíadas de Inverno de Sarajevo de 1984. Também estavam completamente abandonados. Antes de filmar quando estávamos visitando os lugares, não tinha nenhum taxista que queria levar a gente até o bobsleigh de Sarajevo (hoje bem mais turístico), pois além de ladrões, o lugar ainda tinha suspeita de minas terrestres, plantadas durante a Guerra da Bósnia. A gente não conseguiu terminar o filme. E depois disso eu adoeci. Me internei na cocaína, adoeci mais ainda junto ao golpe de 2016. Só em 2019 consegui parar, mas melhorar mesmo, só isolada na pandemia. Como um bicho que se esconde para ir morrer, eu fui me esconder, mas daí melhorei.

O que é “Dispopia”, além do trocadilho entre “distopia” e “pop”?
No filme “Utopia”, tem esse momento onde sentada embaixo de um trem num Spomenik em Jasenovac, eu me tatuava no braço a palavra “Distopic”. Mas eu errei, o “t” virou “p” e saiu “dispopic”. Ao longo dos anos fez cada vez mais sentido. A sonoridade do disco tem algo pop e ao mesmo tempo não, como uma guitarra do Kurt Cobain, levemente desafinada. É um disco sobre o fim do mundo e o fim dos sonhos utópicos, talvez um réquiem à ingenuidade. Dispopia é um nome bem ilustrativo.

A maior parte de “Dispopia” foi gravada em 2014 quando você morava em Paris, mas ele está saindo da gaveta só agora. Como foi o processo de gravação e por que demorou tanto tempo para o álbum sair?
Eu tinha esse teclado brancão, usava as baterias dele (aqueles ritmos, valsa, salsa, rock, pop), captava o teclado em casa, tratava e ia para um estúdio de ensaio, onde eu plugava meus equipos e captava as guitarras, e baixos ali mesmo. As vozes, às vezes gravava ali, às vezes gravava em casa. Nessa época, não me achava capaz de produzir e gravar um disco. Achava que eu tava gravando demos… Engraçado que só em 2021 eu percebi que compus, produzi e gravei um disco totalmente sozinha. Eu sempre colaborei com outras pessoas, e nunca achava que eu poderia me atrever a produzir nada. Sou uma sobrevivente da síndrome de impostora, eu diria. Em 2021, achei num google drive um mp3 com todas as músicas numa sequência. Fui dar uma volta e escutar, sentei no meio fio e chorei. Dali mesmo enviei uma mensagem para meu amigo Rafael Panke perguntando se ele toparia mixar e masterizar o disco. A pós produção quem fez foi ele e ficou muito foda. Então acho que a lição que fica desse disco é que eu sou capaz de fazer coisas sozinha, mas que no fim das contas a colaboração é essencial nos processos criativos. Esse disco não teria saído sem o Panke. E não seria tão bom. Modéstia à parte, esse disco é muito bom.

Apesar de ter sido gravado em 2014, na minha opinião o disco não tem timbres ou produção datadas. Isso foi pensado no momento de gravação dele ou algo foi alterado posteriormente na mixagem/masterização?
Nada foi pensado. Eu tinha comprado alguns pedais bem legais na época, e passava bastante tempo brincando com os pedais. Rolou. Na real é tudo bem simples. Muito reverb, muito chorus, muito delay e muita sofrência.

O clipe de “Struck” foi dirigido por Fernando Nogari e filmado em lugares abandonados nos arredores de Petrova Gora, na Croácia. Como foi essa experiência e como ela se encaixa no disco?
Acho que expliquei ali em cima. Mas talvez seja importante falar sobre o Fernando. A gente conversava muito e se via muito na época que eu tava compondo esse disco. Ele morava em Sarajevo, eu em Paris, tinha uma certa mágica, a gente se encontrava em lugares e países diferentes, a gente sempre tava fazendo umas coisas absurdas juntos, sempre acontecia muita coisa doida, e ao mesmo tempo a gente era esses jovens de 30 anos meio perdidos na vida, duas peninhas levadas pelo vento. “Struck”, especificamente, foi filmado num monumento chamado Petrova Gora. Um monumento construído em homenagem a um hospital subterrâneo que existia e operou durante a segunda guerra. O monumento construído na era Tito era um centro cultural que foi abandonado durante as guerras de independência, e durante a guerra de independência da Croácia, tornou-se novamente um hospital. Achamos muito lixo hospitalar (no clipe é visível, eu em cima de uma montanha) e tinha também um quarto com um monte de uniforme do exército Serbio (exército responsável pelos genocídios nos balkans nos anos 90). Ironicamente o clipe só foi editado em 2021, e pasmem, fui eu quem editou. No meu celular. Foi legal aprender a fazer mais esse paranauê. Clipe de “Know Nothing” fui eu que fiz tudo. E, o terceiro clipe lançado para “Paranoia Beams” é do Fernando parte do “Utopia” filme, que eu reescrevi o texto do início e fiz umas colagens na edição, então ficou uma collab entre eu e o Fer.

As letras e o clima de “Dispopia” são bem pesados e refletem sobre muita coisa que você passou antes do lançamento do álbum. Como é para você revisitar essas histórias e esse repertório ao vivo depois de tanto tempo?
As letras são bem biográficas, algumas falam de um passado remoto e suas implicações no presente (presente de 2014 ou 2022, sei lá, risos) como “Serial Lover”. Algumas, como “Miss C”, eu não sei se foram premonições ou se eu simplesmente perpetuei o que eu chamo agora de premonição. Muita coisa que descrevo ali aconteceu depois, nos anos que vieram. Inclusive esse momento de solidão extrema, fui até o fim do mundo e voltei. Fui até o inferno e voltei.

Para o merch nos shows, você está vendendo camisetas e blusas que você mesma faz com o logo da capa do disco. Existem planos de lançar o álbum em mídia física ou a ideia é manter apenas no formato digital?
Não. Mas se algum selo quiser lançar físico, só mandar um email, que a gente conversa. Mas eu não tenho nada planejado! Seria lindo.

Ao ouvir o “Dispopia”, dá para sacar algumas das influências que você já declarou antes, como post punk, coldwave, vocais que remetem um pouco a Courtney Love, Siouxsie Sioux e algo de PJ Harvey. Quais outras referências que na sua opinião foram marcantes para o disco, mas que podem não estar tão aparentes assim?
Acho que referências de produção, tudo que aprendi com o Daniel Hunt (que produziu meu primeiro disco “Commando”) e com o Adriano Cintra. Eu escuto muita música erudita, na época escutava muito Satie, Chopin, tem um quarteto de cordas chamado Balanescu que eu sou obcecada, além de música tradicional dos balkans também. Acho que além disso, a influência literária deve ser mencionada; tem um certo cinismo, uma certa ironia e muito drama presente. Esses foram os últimos anos que consegui ler avidamente. Em 2013 li “Infinite Jest” [de David Foster Wallace, traduzido como “Graça Infinita” no Brasil]. Dizem que o livro mais marcante da sua vida você lê antes dos 30. Li aos 29. Foi a coisa mais triste e bonita que já li na vida. E difícil também. Mas a hora que entendi, que engrenei e entrei no ritmo, foi devastador. Em 2014, li muita Margaret Atwood, Sylvia Plath, Artaud, Balzac, Jonathan Franzen. Muito drama, distopia e tristeza. Isso tá no disco.

Para tocar as músicas do “Dispopia”, você montou um trio com o Paulo Beto e a Tatiana Meyer do Anvil FX. Como aconteceu isso? Foi difícil adaptar os arranjos para este formato?
Conheci o PB lá por 2012, pelo Daniel Hunt, e sempre admirei de longe. Ele passou por Curitiba lá por 2018 e ficou num hotel ao lado da minha casa. Quando mudei para São Paulo no início de 2022, ele me acolheu aqui e me apresentou para seus amigos, ele tem sido um grande amigo. Moramos perto também. A ideia inicial era fazer o show com o Panke, mas percebemos que eu morando em São Paulo e ele em Curitiba seria meio difícil de coordenar as agendas. Comendo um espetinho, perguntei ao Paulo se ele topava, e na hora ele topou. Conversando sobre, chegamos a conclusão que o ideal para o show seria um trio. O nome da Tati veio na hora. O Paulo é um bruxo e a adaptação dos arranjos ficou fantástica. Obra dele. Vontade de gravar essa versão paralela do “Dispopia”.

Quem ouve a sua fase no Bonde do Rolê e compara com o que você fez no Madrid e depois nos seus discos solo pode até pensar que não é a mesma pessoa cantando, compondo e tocando. Usar o nome Marina Gasolina é uma forma de costurar todas essas facetas diferentes ou você não dá muita importância para isso?
É. Até porque eu detesto esse nome Marina Gasolina. Mas é meio quem sou. Tudo isso aí e mais um pouco. Um pouco menos também. Bem menos (risos). Já quis trocar o nome, mas é tão complicado e tenho preguiça. Sempre tive banda com nome ideia fraca. E vai continuar assim. Uma vez conheci uma menina em Curitiba que virou para mim e disse “nossa, achava que você era quatro pessoas diferentes: a Marina do bordado, a Marina professora, a Marina do Bonde e das tretas e a Marina do Madrid”. Eu só tive o privilégio de fazer muita coisa na vida. Só isso.

Em janeiro de 2022 você lançou “Mira” pelo Madrid e “Vidadulta” em outubro junto com o Adriano Cintra. Vocês têm planos de lançar mais músicas juntos ou reativar o Madrid?
Sim. A gente tá com novidades. Janeiro acho que já vamos lançar uma nova do Madrid. São Paulo me engoliu esse ano, esse disco, o Adri com o “Fogo Fera”, mas a gente tem feito umas coisas sim. Umas músicas bem bonitas.

Quais os próximos passos? O que esperar da Marina Gasolina depois de “Dispopia”?
Gravando com o Adri, é sempre um grande prazer fazer as coisas com ele. A gente não só trabalha bem juntos, a gente se gosta muito. Uma das coisas que eu mais gosto de fazer no finde é andar loucamente por aí com o Adri. Eu, Paulo Beto e Tati Meyer estamos tramando umas coisas juntos também 🙂 Aguardem!