quarta-feira, 30 de junho de 2021

Entrevista: Mateus Fazeno Rock

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
“Andando ali no outro lado da rua, ela me evita pois tem medo que eu leve sua bolsa. Enquanto isso eu vou lhe evitar, levitar, levitar / Inevitável que na minha idade a minha cidade não fique apavorada quando eu ando por aí”. “A fome faminta de morte batendo na porta tirando o sossego / A bala perdida que é teleguiada mirando no corpo do nego”. Esses versos ácidos e por vezes reais demais são alguns exemplos da prosa de Mateus Henrique Ferreira do Nascimento, o jovem preto de 26 anos responsável por “puxar o bonde” – como ele mesmo prefere dizer – do projeto Mateus Fazeno Rock.

Residente em Sapiranga, bairro pobre de Fortaleza com grande incidência de favelas constantemente assoladas pela especulação imobiliária, Mateus passou a frequentar uma biblioteca local quando criança porque a mãe solteira começou a estudar para tentar passar no vestibular. O costume criado ao acompanhá-la despertou no menino um grande interesse pela leitura. Ao descobrir o rock por meio de um vizinho que ouvia muito Nirvana e Silverchair e organizava festivais de bandas no quintal de casa, estava ali plantada a semente de um artista.

Depois de aprender alguns acordes no violão por meio de ações da ONG Revarte (Resgate dos valores através da Arte) e de organizar um sarau no bairro, Mateus teve contato com o teatro, apresentou poemas e suas primeiras ideias musicais para outros artistas e curiosos. Com isso, o rapaz percebeu que poderia falar para pessoas que sofrem os mesmos problemas – racismo, segregação social e violência policial – e usar sua escrita para compartilhar histórias e manter a sanidade, pois “o nego não tem grana pra pagar um analista e nunca ouviu falar em terapia holística, nem reiki, só break”.

E a consolidação de tudo isso veio com “Rolê nas Ruínas“, o primeiro registro de Mateus Fazeno Rock lançado em abril de 2020. Ao longo de nove faixas e pouco menos de 30 minutos, sua música evoca o grunge (“Melô do Djavan” traz citações e samples discretos de “Smells Like Teen Spirit”), punk, reggae, mpb, rap, funk e influências mais regionais recheadas de letras com críticas sociais que jogam luz ao duro lugar do preto periférico na sociedade, de forma que é difícil ouvir e ficar impassível. Não por acaso o álbum apareceu em listas de melhores discos do ano, inclusive de colaboradores do Scream & Yell.

Agora, Mateus escreve mais um capítulo de sua travessia com “Jesus Ñ Voltará”, um novo trabalho em fase de finalização que conta com uma campanha de financiamento com três objetivos: a produção musical, a criação da identidade visual e a produção e impressão do álbum também em vinil de 12 polegadas. Você pode colaborar clicando na página de Mateus Fazeno Rock no Apoia.se.

Em entrevista ao Scream & Yell, Mateus fala sobre as motivações, parcerias e referências por trás de sua arte, como foi lançar “Rolê nas Ruínas” em plena pandemia, dá detalhes do novo álbum e mostra que apesar de todas as tretas, “o rock de favela vem sem medo”.

Você define o seu som como Rock de Favela. O que exatamente seria isso?
Esse termo foi uma forma que eu encontrei de localizar o meu som. Eu tava nesse processo, quando o projeto veio nascendo e se formando, de entender o que que era esse trabalho e o que eram essas músicas. Sempre soube que era rock, mas também me incomodava esse termo por si só, porque o som tem vários outros atravessamentos que eu não consigo colocar lado a lado com uma produção de rock que já existe é pré-estabelecida, sobretudo no Brasil: de um rock branco, de um rock feito no condomínio. Enfim, tenho outras vivências, outra realidade. Então o rock de favela é quase como uma bandeira que se finca num lugar, num território. Ele é abrangente porque pensa a partir dessa minha vivência no meu território, e a partir dela, encontra formas de se produzir.

Você diria que o Rock de Favela é a sua leitura do punk e da coisa do “faça você mesmo”?
Pode ser um “faça você mesmo” também, mas não pela máxima do “faça você mesmo”, até porque eu acho que é um corre de que aqui na favela isso não é uma escolha. Quem nasce nas favelas, quem é pobre, é preto, tem a sua vida precarizada de diversas formas, independente se é pra fazer rock ou qualquer outra coisa na vida. Existe aí um caminho dobrado, um esforço e umas estradas que têm que ser abertas que é um percurso muito específico da experiência de quem vive na favela, que é totalmente distinto de pessoas que vem de outras realidades.

O nome do projeto é Mateus Fazeno Rock, mas você teve bastante ajuda do Nego Célio e do Caiô, dividindo autoria de umas músicas com eles. Pode-se dizer que Mateus Fazeno Rock é uma banda e não só o teu projeto?
Acho que não pode-se dizer que é uma banda porque não tem uma estrutura e nem uma rotina de banda. Esse projeto eu puxo o bonde, digamos assim. O Nego Célio e o Caiô participaram do meu processo criativo, de trocar experiências e composições no sentido da gente mostrar “olha essa música que tô fazendo, olha esse caminho que eu tô pensando”. Principalmente no momento ali que eu tava pensando e criando o “Rolê nas Ruínas”. E por isso eles participaram de uma das faixas, compondo “As Vozes da Cabeça” junto comigo, e também canto a letra do Caiô em “Aquela Ultraviolência”. Mas eu entendo isso como um projeto e não como uma banda, porque existem várias pessoas envolvidas e fazendo parte, mas não existe uma rotina de banda, de ensaio, não tem um batera ou a formação de banda. Tem pessoas próximas que estão pensando a dança ou a cena comigo, tem o Piajay que toca nos shows sendo DJ, quem pensa comigo os clipes… Enfim, tem gente que tá no corre de outras movimentações do projeto. Então entendo mais como um projeto mesmo do que como uma banda. Mas assim que puder, adoraria ter uma banda formada para poder pensar o show nesse outro formato. Não tive a possibilidade de experimentar muito isso por questões estruturais e da pandemia também.

No seu som e letras dá para perceber a influência do Nirvana, do rap, do funk, do reggae e do punk. O que mais você acha que faz parte das tuas referências?
Essa de fato pra mim é sempre uma pergunta muito difícil, porque de um modo geral eu escuto de tudo, dentro de todas as vertentes mesmo. A textura de música rock sempre me interessou e é um lugar que sempre busco, seja através da instrumentação ou da minha voz. Às vezes as duas coisas não vem juntas, por conta da forma que componho mesmo. E essas outras linguagens sempre me atravessaram muito: o funk, o rap e o reggae, porque vivo muito isso aqui na cidade de Fortaleza, em lugares que eu frequentava que tocam essas músicas. Então acho que parte das minhas referências estão mais no meu imaginário e vivência do que de fato em algum som que eu vá buscar, porque escuto de tudo. Escuto muita coisa; desde R’n’B gringo a toque de músicas da capoeira, puxada de rede, toque amazonas, capoeira regional, pontos, escuto Gil, Mateus Aleluia, compositores brasileiros, escuto quase tudo que sai de lançamentos e tô sempre acompanhando pessoas que estão lançando trabalhos novos. Acho que é uma mistura bem grande que não conseguiria nem traçar um mapa de referências. Então acredito que a maior parte das minhas referências estão no meu imaginário e do meu dia a dia e em texturas que já tenho em mente como caminhos para trabalhar. Mas esse novo álbum, por exemplo, está bem vinculado a linguagens do hip-hop na sua construção. E no fim é isso: hip-hop e rock.

Nas tuas letras, dá para a gente pegar umas pérolas como “eu calo a boca e ainda assim a boca fala / a boca fala, fala o que quiser de mim”, entre outras partes mais ácidas e cheias de críticas sociais sobre o espaço dos pretos em relação aos brancos no mundo. Você acha que o rock é elitista?
Acho que é elitista sim. Não só o rock como um pouco a formação de estruturas de possibilidades de circulação, autonomia e visibilidade dentro das cenas [culturais/musicais], de um modo geral. É bem elitista, até porque é uma questão estrutural e histórica, de quem teve o dinheiro para poder criar esses espaços. Então querendo ou não, sim, o rock é elitista.

Como você acha que podemos criar cada vez mais espaço para a atuação de artistas pretos e periféricos no Brasil?
O que acho é que deve existir, principalmente entre as pessoas que tem as instituições, casas de show e mídias que tem esses espaços, criar neles outras dinâmicas de entender as pluralidades mesmo. E não é só sobre pegar uma pessoa e ela ser a representatividade; é sobre dinamizar e buscar isso, porque tenho certeza que tem muita gente produzindo. E não só gente branca; tem gente preta, homens pretos, mulheres pretas, pessoas trans, indígenas, dentro e fora das minoridades de gênero… Então é sobre criar essas dinâmicas; pessoas que tem acesso, que coordenam ou que pensam esses espaços culturais e de circulação de conteúdo e pensamento que deveriam ter essa responsabilidade.

No que a epidemia do coronavírus mudou para você, tanto no lançamento do primeiro álbum quanto na criação do segundo?
Durante o lançamento de “Rolê nas Ruínas” já estávamos na pandemia. Então o que rolou para mim foi ter que repensar estratégias ou sonhos em relação à circulação, a esse movimento e assimilar essa nova realidade. Durante os primeiros meses eu não tinha uma perspectiva, organização ou planejamento de circular a não ser de continuar lançando os materiais que já estavam planejados, como o clipe de “Bem Lentinha/Slowmotion” que saiu logo depois e já era um vídeo que já estava gravado desde antes da pandemia. Então nesse período fiz algumas lives de voz e violão pelo instagram, também pelo youtube e só mais à frente consegui pensar como é que poderia ser se apresentar [desta forma], a partir do convite de alguns festivais. Eu já trabalhava com o DJ Piajay que toca comigo nas apresentações, com quem faz a luz desde a primeira Missa Negra [o nome dos shows do projeto] e então foi pensar essa apresentação com eles, com o Will e a Larissa que dançam comigo, de forma que a gente conseguisse trabalhar num formato seguro e o show tivesse esse movimento que ele merece e precisa dentro dessa nova ótica que é o espaço virtual. E em setembro do ano passado a gente entrou no processo de produzir o novo álbum. Caiô e Agno foram duas pessoas que sentaram comigo para pensar os arranjos e a sonoridade e aí a gente se reunia uma vez por semana ou de 15 em 15 dias na casa um do outro ou lugar que fosse mais propício a visitas por conta da exposição mínima. Então ficamos nos reunindo dessa forma até o ano que virou, veio fevereiro e aí entrou o lockdown de novo. Então parte desse processo aconteceu também no formato virtual. A gente demandava tarefas para serem feitas em casa individualmente e depois se reunia para ouvir os beats, para apontar caminhos, definir novas missõezinhas e partir para outra reunião. Então a gente também teve que passar por essas adaptações. Inclusive agora, porque vai rolar todo um processo de identidade visual desse novo álbum, e a gente tá nesse momento pensando estratégias de como trabalhar de forma segura, de como fazer para não perder certas ideias… Enfim, toda uma série de questões que precisam ser consideradas nesse momento: de saúde, financeira, a exposição nossa e de outras pessoas. Eu acredito que foi muito aprendizado para mim e para nós todos que participamos. Apesar de toda a loucura que é esse momento que a gente tá vivendo, sou feliz com ter descoberto a possibilidade de como continuar assim, sinceramente.

O nome do novo álbum é “Jesus Ñ Voltará”. Por quê? Qual é o conceito por trás desse nome?
Esse nome é o de uma das faixas que está no álbum. Ele foi todo construído juntando memórias minhas, compartilhadas comigo ou vivenciadas no meu território – no bairro onde nasci, na Sapiranga. Essas memórias, essa espiral, conversam muito sobre essa ocupação na área e território onde vivo, mas acho que também acabam dialogando com a vida na favela de um modo geral. E pensando sobre processos de adoecimentos dentro desses territórios por conta das precarizações de nossas vidas e corpos, e processos de cura a partir dessa nossa habitação, desse lugar da memória, desse lugar de encontrar potência dentro das nossas áreas. E aí, por conta de pensar essas coisas, a gente acaba catando, pensando e falando sobre várias ausências, pessoas e vidas que são interrompidas e que são histórias reais. Por estar trabalhando com isso, eu e toda a equipe tentamos ter o máximo de respeito por essas histórias e esse compartilhamento nesse lugar. E o nome “Jesus Ñ Voltará” não é uma crítica direta a algo cristão, quando vocês ouvirem vão entender. Mas é de pensar a partir de uma ausência sobre a nossa própria presença. E a possibilidade de rearticular a nossa continuidade, a nossa passagem aqui, pensando como nós: pessoas que vivem na favela nesse Brasil afora.

Ouvi dizer que você terá convidados nesse novo álbum. Quem são?
Sim, esse álbum tem algumas participações. Além dos projetos do Agê e Outragalera (representados pelo Agno e o Caiô que estão fazendo os arranjos e compondo comigo), tem feat. da Jup do Bairro, da Má dame, Big Léo e da Brisa Flow. Tem dois guitarristas convidados, que é o Rodrigo Brasil, de Sobral e o Theuzitz, de São Paulo. Fora isso tem feat. da Mumu, cantora daqui de Fortaleza. Ela, a Jocasta e a Bianca Ellen compõem o coro de vozes e backing vocals de algumas faixas do álbum.

Em maio, você anunciou um Apoia-se para o lançamento do novo disco. Quais são as recompensas desse esquema? E ele vai estar no ar até quando?
As recompensas são várias. Além do vinil, tem duas oficinas: uma de mixagem com o Guilherme Mendonça, onde também vamos abrir bastante do processo do álbum, e uma de dança com Ângelo William, que é um dos dançarinos do show do álbum “Rolê nas Ruínas”. Tem colagem da artista Alexia do projeto Colagem Negra, tem trabalho artevisual do Blackout (que é o Helder Carlos), tem bordado da Borda Dinha, fotografia do Leo Sila (o Leo Desconectado), tem crochê da Vitória Maria do projeto Avia Handmade – tanto uma bolsa em crochê quanto uma arte em crochê exclusiva da campanha. Talvez eu esteja até esquecendo alguma coisa. Fora isso tem ingresso para o show de lançamento. Você também pode contratar um show do Fazeno Rock! Enfim, tem um monte de recompensas. E a campanha fica no ar até o dia 06 de julho.

Além do lançamento do “Jesus Ñ Voltará”, quais os outros planos que você tem?
Por ora o plano é finalizar o disco. Com ele vem um material audiovisual bem incrível. Nem foi realizado ainda mas já acredito que vai vir uma coisa foda. E pensar um show de lançamento. Desta vez tenho muita vontade de fazer um show como esse álbum merece: com as backing vocals, com uma banda, todos os recursos que são necessários para que o show aconteça. Ainda estou estudando as possibilidades e entendendo esses caminhos, mas por ora são essas as metas e objetivos. Enfim, seja esse show presencial ou não, ele é um dos planos. E aí mais à frente a gente vai vendo outras coisas, singles e outros trabalhos que estão sendo desenrolados em paralelo também.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Entrevista: Olívia de Amores fala de seu primeiro disco, “Não É Doce”

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
Cantora, guitarrista e compositora amazonense de Manaus, Olívia de Moraes ficou quase 10 anos à frente do power trio de rock alternativo Anônimos Alhures. Depois de shows e participações em festivais locais, a promissora banda deixou registrado um único disco – “A Maquinaria Começou a Rodar”, lançado de forma independente em 2015.

No fim de 2016 e começo de 2017, com a morte da bisavó – também chamada Olívia –, o falecimento de uma amiga e o término de um longo relacionamento, a musicista resolveu remexer no baú de canções que criou desde a adolescência e não pretendia encaixar no repertório de sua banda. Para separar suas personas, Olívia de Moraes então tornou-se Olívia de Amores e passou a planejar um disco solo.

Autodidata nas seis cordas, ela foi aprendendo outros instrumentos, como baixo, percussão, sintetizadores e ainda produção musical. Motivada por experiências amargas mas que também trouxeram amadurecimento, Olívia lançou de forma independente em 2020 o resultado de seu extenso processo de luto pessoal: o álbum “Não É Doce”, produzido por Bruno Prestes e masterizado por Steve Fallone – vencedor de um Grammy que já trabalhou com grandes nomes como Strokes, Tame Impala e Kacey Musgraves.

Inspirada por referências díspares e ao mesmo tempo complementares como St. Vincent, PJ Harvey, Letrux, Cícero (em “Canções de Apartamento”), Carne Doce, Mademoiselle K e Land Of Talk, Olívia de Amores invoca durante as 10 faixas de “Não É Doce” linguagens do rock, mpb, citações ao brega nortista, electro-rock e arranjos shoegaze na guitarra.

Porém, assim como todas as pessoas ao longo de 2020, Olívia teve de enfrentar um obstáculo inesperado para a promoção de seu trabalho: o coronavírus. E especificamente de forma mais pessoal com a crise sanitária no estado do Amazonas, culminando com a perda de mais um parente: a avó Glória pelo Covid-19, em fevereiro deste ano.

Mesmo com todos os percalços, Olívia segue seu caminho como uma artista muito consciente de sua obra e de seus significados, despontando como um dos principais nomes da cena independente do Norte do Brasil. Em entrevista ao Scream & Yell, ela rememora os anos com a banda Anônimos Alhures e conta mais sobre o processo de criação de sua estreia solo e de seus excelentes videoclipes. Com vocês, Olívia de Amores.

Você ficou à frente do Anônimos Alhures por quase 10 anos. O que te levou a virar artista solo?
A introspecção me levou à carreira solo. Sempre vinculei o fato de ter banda à vivência de palco e a vida me colocou numa bifurcação ali em 2016: ou eu tentava reunir alguma energia pra manter a banda – e todo trabalho que isso envolve, tanto em marcar reuniões, ensaios, articular coisas coletivamente, quanto a energia de subir num palco mesmo – ou eu guardava o pouquinho de energia que eu tinha, combinava com o tanto de mágoa em que eu tava imersa e me dedicava a um trabalho mais íntimo. A segunda opção virou a única alternativa, no fim das contas. Pesou também uma vontade de me desvencilhar do compromisso de fazer algo bom e fazer dar certo. Em uma banda você simplesmente tem que assumir que investir em um potencial fracasso é submeter os teus companheiros à mesma bad.

“Não É Doce” traz duas músicas do Anônimos Alhures: “La Cancionera” e “Brado Apocalíptico”. Por que você resolveu regravar essas canções?
Durante os meus 10 anos de banda, tive meus melhores momentos de descoberta como musicista, mas também tive muita frustração de não poder gravar as coisas da melhor forma, como tinha composto na minha cabeça, com os arranjos e a intenção que eu tinha, por questões financeiras mesmo. No meio do processo de fazer o projeto solo, me deu vontade de tocá-las e me dei essa oportunidade de regravar com alguma intenção criativa mais original. Dei uma ressignificação para algumas delas em um momento de mais intimidade. E me contive para não refazer mais nenhuma pois seria apenas um ‘Anônimos Alhures chique’. Preferi diversificar depois.

O disco da Anônimos Alhures parece ter uma pegada mais guitarrística, enquanto que no seu as faixas seguem uma linguagem mais pop. Você concorda com isso?
Concordo em partes. Na Anônimos Alhures eu estava em um formato de trio. Eu era a única guitarrista e a única vocalista. Isso impunha na minha guitarra a função e responsabilidade de me desdobrar para fazer todos os arranjos possíveis, nos quais eu fazia solo e base. Talvez por isso pareça ser mais rock ou guitarreiro. Mas no meu projeto, pego essa ideia e não canalizo apenas na guitarra; eu consigo viver essa ideia em vários corpos. Um solo que eu pensei originalmente para a guitarra mas com um timbre diferente, eu simplesmente faço num sintetizador, não preciso fazer numa guitarra. Assim posso ser seis pessoas, sete, oito e tudo bem, o estúdio permitia isso. E no palco agora com uma nova formação também.

A capa do álbum traz você com uma espécie de monstro te abraçando. De onde saiu essa ideia e qual o significado dela?
Todos vão saber o que ele significa e seus motivos em breve, após o lançamento do curta-metragem do álbum, em que o monstro é um dos personagens. Ele simboliza alguns sentimentos densos, um pouco depressivos, que estão ali o tempo todo, pegando no teu pescoço e se alternando na vida e te substituindo em algumas coisas de uma forma metafórica, na forma de agir e reagir. Mas as pessoas vão ter uma noção mais contextualizada disso tudo quando sair o filme.

“Não É Doce” foi produzido pelo Bruno Prestes. Como acha que ele influenciou no som do álbum?
O Bruno me conheceu na minha pior forma: mixando o áudio de um dos piores (se não o pior) shows que já fiz. Era um festival em outro município, o baterista não tinha chegado a tempo, tive que brigar pelo direito de tocar sozinha e ele apareceu, já depois dos meus primeiros acordes. Por causa do estresse, bebi muito, fiquei com raiva e cantei do jeito que dava. Bruno ainda assim gostou de mim, mesmo depois do trabalho que dei pra ele na edição. Pra mim isso era apostar mesmo no meu trabalho, acabou me incentivando muito. E ele é uma referência aqui em Manaus, cantor, guitarrista e compositor de uma banda que inspirou muito amazonense roqueiro, a Several. Desse acaso, ficamos conhecidos e depois firmamos essa amizade com as gravações.

O disco foi masterizado por Steve Fallone, um grande nome estrangeiro. Como aconteceu isso?
O Fallone veio pela pesquisa e pelo momento em que o dólar ainda era possível. Apesar de um contato bem raro, de conversar mesmo com ele, acabou que no final também ficou mais pessoal a relação, e ele falou que gosta muito das minhas músicas. Fiquei muito feliz, valeu demais.

O álbum tem até o momento sete clipes, um jogo para celular e também tem o filme que vai sair em breve. Você sempre pensa nas suas criações desta forma multimídia?
Eu acho que já componho bem “multimídia”. Ou melhor, de uma forma meio sinestésica. Por exemplo, “Abisso” compus a partir de imagens mentais sobre o que seria viver numa fossa abissal; “Janela Remota” fiz como se ela fosse um filme e a música um roteiro; “Só Vamo” compus de uma forma 8bit, como se fosse um game (já imaginando que seria um game).

Eu até ia comentar sobre o clipe de “Só Vamo” e o jogo relacionado “Super Maria Sis” (disponível na Play Store). Durante a coisa toda você passa por umas paredes com umas frases homofóbicas, uns bolsominions, mas ao mesmo tempo tem alguma leveza ali.
Essa é justamente a minha música 100% feliz e bem curta. Não sei falar muito sobre coisa alegre. Eu sou uma pessoa alegre, mas quando se trata de música, não é um sentimento muito rico ou motivador. Eu acho que a alegria é autoexplicativa, mas as coisas que a gente vive de perda, de luto, elas requerem mais análise, mais reflexão e mais notas, tons e palavras para materializar e entender. Mas nessa foram dois feitos em uma música só: sempre quis fazer uma música curta e nunca consegui, pois sou muito prolixa falando e até na guitarra. Quando fiz “Só Vamo”, com essa objetividade, todo aquele rush de amor gay, quis metaforicamente pular por cima de bolsominion mesmo, dizendo “eles não vão nos atingir”. E foi uma coisa muito legal de fazer. É gay pra caramba, é bem sapatão!

Então todas essas obras se complementam ou isso foi feito meio que por acidente?
Não existem acidentes (risos). Tenho uma lógica (que nunca vou compartilhar com ninguém) do encadeamento de todas essas músicas nas minhas obras visuais que vão se aperfeiçoar com o lançamento do curta-metragem. Existem pequenos easter eggs que eu coloquei de uma forma consciente em cada vídeo (que prefiro chamar de “faixas-vídeo”). Então fazer “Não É Doce” foi um exercício de tudo isso junto. Gosto de pensar os vídeos desse álbum, junto com o curta, como uma parte inerente à composição, não como uma consequência, uma divulgação ou uma estratégia de marketing.

Pode-se dizer que muitas faixas do álbum são baseadas no sentimento de perda e infelizmente estamos passando por um momento de muitas perdas no país, com Manaus sendo o centro disso. Sendo uma artista manauara, como isso tem influenciado nas suas criações ou na forma como você está tocando a divulgação do seu trabalho?
Tem influenciado minhas ‘crianças’ da forma radical: não tenho criado. É quase como uma penitência, abstinência natural, falta de vontade criativa. E é estranho, porque as circunstâncias que me levaram a “Não É Doce” eram as piores, na minha vida íntima. É uma dor diferente da que experimentamos sendo brasileiros e testemunhando um apocalipse sem data pra terminar. Me vi em uma posição de culpa toda vez que algo de bom ou interessante acontecia na carreira, então me calei. Eu sei que arte ajudou muita gente nesse período, e meu álbum tava lá pra dar essa força pra quem pudesse aproveitar. Mas falar de carreira me parecia um tanto egoísta, vaidoso ou superficial. Até hoje é difícil sair disso, mas já há mais esperança. Sinto que tem uma energia maior que eu, me puxando externamente pra arte. E é bom, são pequenos resgates. A participação no Labsônica foi isso pra mim, me instigou a um desafio no meio do desespero. Agora, a live do Itaú Cultural me tira da zona de conforto. Aos poucos me sinto mais forte enquanto artista e enquanto sobrevivente do caos.

E quais são os próximos passos e novidades para essa live do Palco Virtual no Itaú Cultural no dia 17/06? Dá pra esperar algo como o vídeo feito todo em loops com você tocando todos os instrumentos que rolou no Festival Labsônica?
No Festival Labsônica estávamos em um momento sanitário mais crítico que agora. Então para o Itaú Cultural decidi fazer um showzinho mais tradicional, mesmo, com três amigos, poucos ensaios e zero contato físico. Isso significa menos loops e solidão, mas mais experiência compartilhada.