*Resenha originalmente publicada no Urbanaque.
O trabalho do vocalista e compositor Chris Cornell pode ser dividido em ao menos duas fases: a de ouro, à frente do Soundgarden e do projeto Temple of the Dog, na qual o artista compôs grandes clássicos dos anos 90 durante os momentos mais negros de suas experiências com drogas e depressão; e a fase comercial, na qual Cornell parece se esforçar para superar a imagem de rockstar mórbido, sucumbido às facilidades de se aceitar como um símbolo sexual e buscar seu lugar no mainstream com melodias radiofônicas melosas. Pois bem; foi por cultivar um grande apreço e saudosismo pela primeira fase que este que vos escreve foi ao show do artista no Fillmore, em Miami Beach, no último dia 16.
Para minha sorte, tudo indica que Cornell está bastante interessado em fazer as pazes com suas origens: em 2010, o vocalista anunciou o retorno do Soundgarden aos palcos, com um novo álbum previsto para lançamento ainda em 2012. E em suas turnês acústicas como artista solo, Cornell apresenta um repertório bem democrático, tocando canções de todas as suas fases, mas favorecendo os apreciadores de seus trabalhos mais antigos. Desta forma, fica fácil para o vocalista conquistar o público – seja pela força de seu repertório ou pelos fãs saudosistas que o circundam.
A fixação de parte do público do Fillmore pelo período noventista do cantor já ficou evidente no início da apresentação; uma fã na primeira fileira chamou a atenção de Cornell, ao oferecer um presente inusitado: uma bermuda branca customizada, com "Say Hello 2 Heaven" escrita em cores berrantes, além de um boné branco. Sensibilizado, o artista aceitou os presentes, rasgando elogios ("isso que é um boné de verdade, e não aquelas coisas que servem para você fazer propaganda de times da NBA") e prometeu realizar o pedido da fã mais tarde. Mas mal terminada a execução de "Can’t Change Me", Cornell já iniciou os acordes que desembocariam em uma sequência matadora de músicas do Temple of The Dog: "Say Hello 2 Heaven", "Wooden Jesus", "All Night Thing" e o hit "Hunger Strike". Durante estas quatro músicas, Cornell desencadeou o momento mais emocionante daquela noite, devidamente acompanhado pelo coro da plateia.
Depois do momento revival, o vocalista comentou que, chegando ao camarim naquela noite, encontrou um bilhete de um certo Ronnie, com um pedido: subir ao palco para pedir sua namorada em casamento. Cornell então recebeu seu 'velho amigo Ronnie' e passou o microfone para que o fã fizesse a declaração. Grávida, a mais nova noiva do pedaço aceitou o pedido e subiu ao palco. O casal, perdido entre beijos e abraços, saiu de cena em meio a brincadeiras de Cornell. "Crianças, lembrem-se: sexo somente depois do casamento. Jesus está vendo. Ele não tem nada melhor pra fazer mesmo". E como que para destoar totalmente do romantismo que se formou ali minutos antes, emendou "Fell On Black Days" do Soundgarden. Ainda no anticlímax da declaração de amor, veio "Burden In My Hand". Não é sempre que se pode ouvir frases tão embebidas de desilusão como "o medo é forte e o amor é para todos exceto eu" e "eu atirei no meu amor hoje, você choraria para mim?" após um pedido de casamento…
Reforçando ainda mais o clima nostálgico, Cornell relembrou "Seasons", da trilha do filme Singles (Vida de Solteiro, no Brasil), comédia romântica famosa por retratar a Seattle em plena era grunge. Após apresentar "Sunshower" – seu primeiro esforço solo após o fim do Soundgarden, que também virou trilha do filme Grandes Esperanças -, Cornell anunciou que faria algo diferente: apontou para uma vitrola à sua direita no palco e disse que tocaria um disco com uma gravação de um piano de calda, inspirada no take que a falecida amiga Natasha Shneider gravou para seu primeiro disco solo. E assim veio "When I’m Down", sem acompanhamento no violão, com o artista concentrando-se exclusivamente em sua apresentação vocal. E se seu desempenho não foi impecável em relação à versão de estúdio, ao menos foi o momento no qual sua voz mais brilhou naquela noite. O setlist ainda trazia uma surpresa para os verdadeiros fãs da fase antiga de Cornell. Ao enfim puxar a Fender Telecaster que descansava silenciosa à sua esquerda desde o início da apresentação, Cornell explicou: "escrevi essa música durante as gravações de Badmotorfinger, e como eu a compus em uma afinação muito diferente, era difícil de tocá-la nos shows do Soundgarden. Não tínhamos muitas guitarras disponíveis". Em seguida, iniciou as notas da improvável "Mind Riot".
O pessoal que estava carente de hits do repertório do Audioslave também foi prontamente atendido: "I Am The Highway" e "Doesn’t Remind Me" surgiram coladas e terminaram o set principal, com o vocalista saindo do palco ovacionado. Cornell ainda retornou para o bis, tocando sua versão do clássico "Billie Jean" e uma insossa canção nova intitulada “Roads We Choose”. Se o público se mostrou alheio à novidade, se rendeu em seguida com uma "Like A Stone" cantada em uníssono pelos presentes. O cover de Led Zeppelin, "Thank You", passou despercebido para dar lugar ao maior hit do Soundgarden, "Black Hole Sun" e o final, com uma versão desnecessária da piegas "Imagine", o clássico de John Lennon. Mas exageros à parte, a escolha do setlist pareceu destinada a arrebatar até mesmo o fã mais chato e exigente da noite – este vos escreve.
Setlist
Scar on the Sky
As Hope and Promise Fade
Ground Zero
Be Yourself
Can't Change Me
Say Hello 2 Heaven
Wooden Jesus
All Night Thing
Hunger Strike
Fell on Black Days
Burden in My Hand
Seasons
Sunshower
When I'm Down
Mind Riot
I Am the Highway
Doesn't Remind Me
Bis:
Billie Jean
Roads We Choose
Like a Stone
Thank You
Black Hole Sun
Imagine
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